A boca do homem é um espaço culturalmente sacralizado e indicado para receber a comida. Aí se inicia um processo palatável, que é precedido pelo visual, pelo olfativo, formando estéticas próprias para a compreensão dos alimentos. O alimentar-se implica um ato biológico e também social e cultural. A convencionalidade de comer nasce com a necessidade da nutrição e da sobrevivência, o que não retira significados simbólicos próprios de cada prato, tipos de ingredientes, locais de feitura e de oferecimento. O ritual de comer sinaliza um dos mais marcantes momentos das diferenças étnicas e profundamente antropológicas.
É amplo o conceito de comer, até mesmo com os olhos. Comer com os olhos apresenta o desejo, manifestado por certa voracidade, precedente do comer na atitude mais formal, com a boca. As sensações do olfato, a emoção, a visão da comida são componentes que integram e predispõem o indivíduo e seu grupo a interpretar e se inteirar da comida, para, em seguida, comê-la. Assim, o corpo inteiro está pronto para comer. Comer fisicamente e comer espiritualmente, comer emblematicamente. A comida é antes de tudo um dos mais importantes marcos de uma cultura, de uma civilização, de um momento histórico, de um momento social, de um momento econômico.
Todos os sentidos são chamados para comer. Todos os códigos visuais, térmicos, olfativos, funcionam diante da relação homem/comida. Come-se por inteiro, com o corpo, com a ética, com a moral, com todos os códigos próprios do grupo e do estado social em que o indivíduo faz parte. E, assim, a comida intera-se, establece-se nas relações mais profundas entre o homem e a cultura.
Nos terreiros, especialmente nos de Candomblé, Xangô e Mina, a comida ganha dimensão valorativa, sendo estendido o alimento do corpo e também do espírito. Comer, nos terreiros, é estabelecer vínculos e processos de comunicação entre homens, deuses, antepassados e natureza.
Não há gratuidade na elaboração de uma comida em âmbito socioreligioso. Cada ingrediente, as combinações de ingredientes, os processos do fazer e do servir assumem diferentes significados, todos integrantes do sofisticado sistema de poder e crença que fazem os princípios cognitivos do próprio terreiro - coerência com o tipo de Nação, liturgias, morfologias particulares dos estilos, do crer e do representar.
As emoções diante de cada comida são fundadas, geralmente, no conhecimento peculiar de cada prato, sua intenção, seu uso, seu valor particular e, também, no conjunto de outros pratos do cardápio devocional do terreiro.
O dendê é, sem dúvida, uma das mais imediatas e eficazes marcas da África na mesa afro-brasileira. Funciona como uma espécie de síntese de todos os sabores africanos aqui preservados e relembrados nos terreiros e também na ampla e diversa culinária nas casas, nas feiras, nos mercados, marcando ciclos festivos, entre outros eventos sociais.
Se uma África geral é assumida no dendê, então comer dendê é comer um pouco da África, trazendo-a, assim, para a intimidade de um prato, de um ritual, de um gosto condicionado às civilizações e às histórias dos povos africanos. Reforçam-se laços e nutrem-se relações simbólicas a partir das gastronômicas.
Comer além da boca, contudo, é uma ampliação sobre o conceito de comer nas religiões afro-brasileiras. Tudo está na permanente lembrança e ação de que tudo come. Come o chão, come o ixé, come a cumeeira, come a porta, come o portão, comem os assentamentos, árvores comem; enfim, comer é contatar e estabelecer vínculos fundamentais com a existência da vida, do axé, dos princípios ancestres e religiosos do terreiro.
É amplo o conceito de comer - e nele está implícito o de beber, da água lustral à matança de determinados animais - folhas, feijões, milhos, cebolas, camarões defumados, dendê, mel, cachaça, entre outros, fazem o cardápio votivos.
Comer é acionar o axé - energia e força fundamentais à vida religiosa do terreiro, à vida do homem.
A cabeça é alimentada no bori. Outras partes do corpo são também tocadas pelos materiais dessa obrigação - água, sal, mel, dendê, obi, orobô, sangue, folhas maceradas. Assim come e se nutre a cabeça, que é parte do corpo, espaço dos mais sagrados entre os demais que fazem o próprio terreiro.
Os insrumentos musicais também comem, e entre eles, os atabaques.
Comer é, antes de tudo, se relacionar. O que é oferecido é codificado na complexa organização do terreiro, assim circulando e se renutrindo. Há sentido e função em cada ingrediente e há significados nas quantidades, nos procedimentos, nos atos das oferendas, nos horários especiais e dias próprios, no som de cânticos, de toques de atabaques, agogô, cabaça e adjá ou do paô - bater palmas seguindo ritmos específicos.
Objetos pessoais e outros coletivos para manterem suas propriedades têm de comer. São os fios-de-contas, símbolos particulares dos indivíduos, que também relatam histórias iniciáticas e têm, obrigatoriedade, de comer junto com o corpo e os implementos sacralizados dos assentamentos nos roncós ou pejis.
Pode-se afirmar que comer, nessa concepção abrangente do conceito litúrgico do terreiro, equivale a cultuar, zelar, manter os princípios que fazem o próprio axé enquanto a grande unidade, a grande conquista do ser religioso do terreiro.
Os espaços da natureza também comem. Mar, rios, matas, estradas, pedreiras e outros, que têm sinalização por monumentos naturais ou vindos da intervenção do homem, da marca de um orixá, de um vodum, de um inquice, de um caboclo.
É preciso alimentar a natureza, os deuses, os antepassados, que representam pratonalmente os elementos ou são expressos nas atividades de transformação do mundo. São guerreiros, caçadores, ferreiros, reis, entre outros, que desejam a garantia da harmonia entre hoje/vida e história/antepassado na temporalidade vigente nos terreiros.
Há uma espécie de boca geral, de grande boca do mundo, simbolizada. Tudo e todos comem. Todos querem comer. Comer para existir e manter propriedades.
Os atos públicos do ajeum nos terreiros de Candomblé são dos mais significativos momentos da socialização pela comida. A comida, geralmente, é originária do cardápio dos deuses, fortalecendo relações entre homem/deus patrono.
Asssim, o ajeum é uma festa do comer, do beber, do falar sobre os rituais precedentes - música, dança, obrigações dos santos; é ainda um ritual de alimentação física. Pode-se dizer que comer é festejar, vivenciar o mundo.
Compartilhar da comida sagrada, do banquete cerimonial dos deuses é ato democrático. Todos são convidados. Todos participam do ajeum público.
Tão dinâmico na ação biológica e convencional de comer é o conceito de comer no âmbito das religiões afro-brasileiras. Comer equivale a viver, a manter, a ter, a preservar, a iniciar, a comunicar, a reforçar memórias individuais e coletivas. Assim, fundada nesse princípio, a vida é a grande celebração realizada entre os homens e seus deuses.
Isso se dará na compreensão diversa e complexa do ato de comer, quando tudo come, até o homem.
Texto de Raul Lody
Todos os sentidos são chamados para comer. Todos os códigos visuais, térmicos, olfativos, funcionam diante da relação homem/comida. Come-se por inteiro, com o corpo, com a ética, com a moral, com todos os códigos próprios do grupo e do estado social em que o indivíduo faz parte. E, assim, a comida intera-se, establece-se nas relações mais profundas entre o homem e a cultura.
Nos terreiros, especialmente nos de Candomblé, Xangô e Mina, a comida ganha dimensão valorativa, sendo estendido o alimento do corpo e também do espírito. Comer, nos terreiros, é estabelecer vínculos e processos de comunicação entre homens, deuses, antepassados e natureza.
Não há gratuidade na elaboração de uma comida em âmbito socioreligioso. Cada ingrediente, as combinações de ingredientes, os processos do fazer e do servir assumem diferentes significados, todos integrantes do sofisticado sistema de poder e crença que fazem os princípios cognitivos do próprio terreiro - coerência com o tipo de Nação, liturgias, morfologias particulares dos estilos, do crer e do representar.
As emoções diante de cada comida são fundadas, geralmente, no conhecimento peculiar de cada prato, sua intenção, seu uso, seu valor particular e, também, no conjunto de outros pratos do cardápio devocional do terreiro.
O dendê é, sem dúvida, uma das mais imediatas e eficazes marcas da África na mesa afro-brasileira. Funciona como uma espécie de síntese de todos os sabores africanos aqui preservados e relembrados nos terreiros e também na ampla e diversa culinária nas casas, nas feiras, nos mercados, marcando ciclos festivos, entre outros eventos sociais.
Se uma África geral é assumida no dendê, então comer dendê é comer um pouco da África, trazendo-a, assim, para a intimidade de um prato, de um ritual, de um gosto condicionado às civilizações e às histórias dos povos africanos. Reforçam-se laços e nutrem-se relações simbólicas a partir das gastronômicas.
Comer além da boca, contudo, é uma ampliação sobre o conceito de comer nas religiões afro-brasileiras. Tudo está na permanente lembrança e ação de que tudo come. Come o chão, come o ixé, come a cumeeira, come a porta, come o portão, comem os assentamentos, árvores comem; enfim, comer é contatar e estabelecer vínculos fundamentais com a existência da vida, do axé, dos princípios ancestres e religiosos do terreiro.
É amplo o conceito de comer - e nele está implícito o de beber, da água lustral à matança de determinados animais - folhas, feijões, milhos, cebolas, camarões defumados, dendê, mel, cachaça, entre outros, fazem o cardápio votivos.
Comer é acionar o axé - energia e força fundamentais à vida religiosa do terreiro, à vida do homem.
A cabeça é alimentada no bori. Outras partes do corpo são também tocadas pelos materiais dessa obrigação - água, sal, mel, dendê, obi, orobô, sangue, folhas maceradas. Assim come e se nutre a cabeça, que é parte do corpo, espaço dos mais sagrados entre os demais que fazem o próprio terreiro.
Os insrumentos musicais também comem, e entre eles, os atabaques.
Comer é, antes de tudo, se relacionar. O que é oferecido é codificado na complexa organização do terreiro, assim circulando e se renutrindo. Há sentido e função em cada ingrediente e há significados nas quantidades, nos procedimentos, nos atos das oferendas, nos horários especiais e dias próprios, no som de cânticos, de toques de atabaques, agogô, cabaça e adjá ou do paô - bater palmas seguindo ritmos específicos.
Objetos pessoais e outros coletivos para manterem suas propriedades têm de comer. São os fios-de-contas, símbolos particulares dos indivíduos, que também relatam histórias iniciáticas e têm, obrigatoriedade, de comer junto com o corpo e os implementos sacralizados dos assentamentos nos roncós ou pejis.
Pode-se afirmar que comer, nessa concepção abrangente do conceito litúrgico do terreiro, equivale a cultuar, zelar, manter os princípios que fazem o próprio axé enquanto a grande unidade, a grande conquista do ser religioso do terreiro.
Os espaços da natureza também comem. Mar, rios, matas, estradas, pedreiras e outros, que têm sinalização por monumentos naturais ou vindos da intervenção do homem, da marca de um orixá, de um vodum, de um inquice, de um caboclo.
É preciso alimentar a natureza, os deuses, os antepassados, que representam pratonalmente os elementos ou são expressos nas atividades de transformação do mundo. São guerreiros, caçadores, ferreiros, reis, entre outros, que desejam a garantia da harmonia entre hoje/vida e história/antepassado na temporalidade vigente nos terreiros.
Há uma espécie de boca geral, de grande boca do mundo, simbolizada. Tudo e todos comem. Todos querem comer. Comer para existir e manter propriedades.
Os atos públicos do ajeum nos terreiros de Candomblé são dos mais significativos momentos da socialização pela comida. A comida, geralmente, é originária do cardápio dos deuses, fortalecendo relações entre homem/deus patrono.
Asssim, o ajeum é uma festa do comer, do beber, do falar sobre os rituais precedentes - música, dança, obrigações dos santos; é ainda um ritual de alimentação física. Pode-se dizer que comer é festejar, vivenciar o mundo.
Compartilhar da comida sagrada, do banquete cerimonial dos deuses é ato democrático. Todos são convidados. Todos participam do ajeum público.
Tão dinâmico na ação biológica e convencional de comer é o conceito de comer no âmbito das religiões afro-brasileiras. Comer equivale a viver, a manter, a ter, a preservar, a iniciar, a comunicar, a reforçar memórias individuais e coletivas. Assim, fundada nesse princípio, a vida é a grande celebração realizada entre os homens e seus deuses.
Isso se dará na compreensão diversa e complexa do ato de comer, quando tudo come, até o homem.
Texto de Raul Lody
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