XANGÔ: MITO E HISTÓRIA
INTRODUÇÃO
A mitologia se relaciona profundamente com a história, ao misturar elementos do imaginário, com elementos da realidade.
A cultura yorubá tem uma rica mitologia, baseada em tradição oral que muitas vezes é subestimada e relegada ao plano do exótico, ignorando-se completamente os aspectos históricos que possam estar contidos nela. Este comportamento de desprezo pelo estudo histórico das culturas da África vem da visão eurocêntrica que imperou no Brasil até.
O objetivo desta pesquisa e procurar mostrar os aspectos históricos possam estar contidos nos mitos e buscar propostas e modelos de pesquisa para esta área.
O MITO E SUA RELAÇÃO COM A HISTÓRIA
Em primeiro lugar, o que seria o mito? Buscando uma forma mais correta, Eliade (2000, p.12) define como:
[...] o mito conta uma história sagrada, relata um acontecimento que teve lugar no tempo primordial, o tempo fabuloso dos começos. Noutros termos, o mito conta como, graças aos feitos dos Seres Sobrenaturais, uma realidade passou a existir, quer seja na realidade total, o Cosmos, quer apenas um fragmento: uma ilha, uma espécie vegetal, um comportamento humano, uma instituição.
Os mitos contam como os Seres Sobrenaturais agiram no mundo e expressaram sua vontade e desta forma, o homem passa a usar o mito como modelo de suas próprias ações, através de rituais, cerimônias e nos diversos campos da área humana como sabedoria, educação, arte, trabalho ou casamento (ELIADE, 2000, P.13). Os ritos, cerimônias e lembranças servem para reatualizar parte da história mítica, de forma que os acontecimentos do passado mítico podem continuar influenciando e renovando o mundo no tempo histórico.
Mitos sobre origem de instituições ou grupos acabam se tornando equivalentes ou completares aos mitos da criação do próprio mundo (mitos cosmogónicos). Conforme mostra Eliade (2000, p.25, grifo do autor) “Todo o mito de origem narra e justifica uma situação nova – nova no sentido em que ela não existia desde o princípio do mundo. Os mitos de origem prolongam e completam o mito cosmogónico: contam como o Mundo foi modificado, enriquecido ou empobrecido”.
A história pode ter relação com o mito, quando este pode ter tido o início num acontecimento ou personagem histórico, como procura mostrar Beniste (2008, p.17-18):
A civilização yorubá revela que quando o personagem histórico Odùdúwà chegou a Ilé Ifé, lá encontrou um povo autóctone, com suas instituições e um rei local (Obàtálá, rei dos Igbo). Toda a história de sua luta pelo poder e a forma como passou a legislar o povo marcaram o início de uma nova civilização, a ponto de transformar esse acontecimento no mito da criação mundo entre as mais expressivas regiões yorubás, concorrendo com Òsàlá como criador da Terra.
A mitologia nasce propriamente em razão de algo que independe de toda invenção. São as necessidades de um povo de tradição oral que mantêm registrados seus fatos históricos.
Este processo de mistura entre a realidade e o imaginário é semelhante ao processo de construção de deuses e seres sobrenaturais, conforme explicam Laplantine e Trindade (1996, p.37): “[...] o homem toma como referência uma realidade dada que caleidoscopicamente reordena, reestrutura e recria. Nesse processo, o imaginário tem como referência o real, dando-lhe outros sentidos fornecidos pelo material simbólico que utiliza”.
Os deuses construídos no imaginário seguem os parâmetros religiosos e sociais do grupo e podem ir se modificando e sendo reinterpretados à medida que surgem novos fenômenos e problemas na sociedade (LAPLANTINE; TRINDADE, 1996, p. 38).
Neste contexto de construção de deuses é que pretendo analisar o que pode haver de histórico e imaginário nos mitos yorubás que envolvem o personagem Xangô.
XANGÔ: UM RESGATE PARA A HISTÓRIA
Antes de escrever sobre Xangô considero necessário escrever sobre a história dos yorubás que envolvem as origens das cidades Ilé Ifé e Oyó e suas dinastias reais.
Conforme já citado anteriormente neste artigo, Beniste mostra a hipótese de Odudua ter chegado a Ilé Ifé e lá encontrado um povo autóctone e um rei, chamado Obatalá (Oxalá). As disputas entre Obatalá e Odudua teriam gerado um mito de criação do mundo.
O mito em si diz que Olodumaré, o deus supremo, tinha incumbido Obatalá de criar o mundo. No caminho Obatalá teria se embebedado, adormecido e não cumpriu sua tarefa. Olodumaré então determinou que Odudua criasse o mundo e assim foi feito. Olodumaré, em compensação, deu a Obatalá a tarefa de criar os seres humanos, que foi então cumprida (SILVA, 2006, p.480).
Sobre as origens de Odudua existem muitas hipóteses, como Odudua ter chegado em Ifé vindo de uma região do norte, ou do nordeste, que pode ser desde um lugar a poucos quilômetros de Ifé, como o monte Ora, ou mesmo de um lugar muito mais longe como Meca.
Se for para considerar a hipótese da origem na cidade de Meca, seria baseado no mito de que ele seria filho de Lamurudu, um dos reis de Meca, que tentou impor o culto politeísta como religião de estado, mas foi morto pelos muçulmanos, ocorrendo uma guerra civil e a morte de Lamurudu. Seus partidários e sua família teriam sido expulsos de Meca, entre eles Odudua, onde chegaram a Ifé e fundaram um reino.
Com relação a Obatalá, há uma grande probabilidade de que fosse o rei de um povo que já estava na região de Ifé antes da chegada de Odudua e seu povo, que por ser mais forte e organizado militarmente, tomou posse do reino e estabeleceu uma nova dinastia, mas não sem antes haver um acerto com os partidários de Obatalá, no qual estes poderiam participar do governo (SILVA, 2006, p.479-481).
Outra figura importante nos mitos yorubás é Oraniã. Ele seria um neto de Odudua que o sucedeu no trono de Ilé Ifé e organizou uma expedição a Meca para vingar a morte de seu bisavô Lamurudu. Devido a oposição dos nupes, Oraniã não pode prosseguir com a viagem a Meca, mudou seu caminho e fundou a cidade de Oyó. A criação da cidade de Oyó se deu por volta do século XIV (SILVA, 2006, p.584).
Chega-se então a Xangô. Conforme o mito, Xangô seria filho de Oraniã com a filha de Elempe, um rei nupe. Ele foi criado nas terras de sua mãe e posteriormente assumiu o trono de Oyó, destronando seu irmão Ajaca (BENISTE, 2008, p.91). Xangô se caracterizou por ser um rei guerreiro, que conquistou muitas vitórias militares sobre seus opositores.
Depois de 7 anos, Xangô deixou o poder provavelmente destituído por seu próprio povo. As causas não são definidas com certeza, mas de acordo com os mitos existem dois motivos: ele conjurou um raio, que acidentalmente matou muitas pessoas de seu povo, ou por motivo de inveja e orgulho, incitou a discórdia entre os dois maiores heróis de seu exército, buscando que os dois morressem e só ele ficasse sendo adorado pelo povo (BENISTE, 2008, p.92). Qualquer um dos dois motivos causaram sua destituição do poder e seu exílio (SILVA, 2006, p.586).
A destituição dos reis yorubás do poder, por seu próprio povo, foi explicada por Giordani (2007, p.132):
[…] o rei, símbolo e portador da vitalidade do seu povo, era designado por um período de 7 anos, septênio que, em última instância, podia renovar-se uma vez, mas que também era suscetível de ser abreviado no caso em que as faculdades físicas e mentais do soberano diminuíssem, ameaçando com este desfalecimento a prosperidade de seu povo. Um conselho de anciãos, velhos ou notáveis, comunicava-lhe que deveria suicidar-se; se fosse necessário prestavam-lhe auxílio. Estamos aqui diante de um expediente que visava evitar a tirania, a arbitrariedade e a ambição insaciável e estabelecia um “absolutismo compensado”.
Após a destituição, Xangô teria morrido ou desaparecido e se tornado um Orixá. O mito sobre a divinização de Xangô conta que após seu suicídio seus adversários passaram a comemorar sua morte e a humilhar os partidários de Xangô.
Seus auxiliares e sua esposa teriam voltado ao local de seu suicídio e constatado que seu corpo tinha desaparecido. Então a voz de Xangô, surgida de dentro da terra, informou que ele tinha se tornado um orixá e mostraria seu poder. Os habitantes de Oyó não deram importância ao que contaram os auxiliares e a esposa de Xangô e continuaram festejando, até que, de repente, uma grande tempestade de raios e ventos causou grande destruição e morte. Foi constatado pelo Babalao da cidade que a causa era mesmo o poder de Xangô e os habitantes de Oyó lhe prestaram homenagem, passando a ser cultuado por todos (BENISTE, 2008, p.98).
A transformação de Xangô num Orixá significou para seus adeptos que ele não tinha morrido, mas sim que estava vivo, mas numa condição diferente de existência e por esse motivo o mito conta que as pessoas que passaram a cultuar Xangô como Orixá, viram o símbolo de um machado no céu formado por raios e disseram: “O rei não se enforcou!” (BENISTE, 2008, p.98).
Quanto a isso, Laplantine e Trindade (1996, p.41) explicam:
O imaginário rompe com as fronteiras do tempo e do espaço e, em sua lógica própria, as divindades são construídas a partir da revelação das qualidades que simbolizam. Nesse sentido, são divindades substantivas (seres humanos divinizados) que corporificam idéias, valores e qualidades significativas para a coletividade que as constroem. Não há portanto nessa relação de produção de deuses, distinção entre essência da divindade, como ser existente e participante da vida social, e a noção de estar no mundo dos mortais.
A crença de Xangô não ter morrido corresponde a esse rompimento do tempo e do espaço e a atribuição de características e simbolismos correspondem ao que ele pode ter representado na vida real, como seu aspecto guerreiro e agressivo, representado na crença de que ele é o senhor dos raios, do fogo e do trovão, assim como a crença de que ele é um mestre da magia e um grande estrategista, representando sua capacidade estratégica e sua astúcia para vencer os combates nas batalhas participou como rei e figura histórica.
É possível que Xangô tenha existido historicamente e que suas lendas revelem que ele foi um conquistador nupe que se impôs militarmente aos yorubás, devido ao mito contar sua origem materna nupe (SILVA, 2006, p.587).
Em mais um trecho da obra de Laplantine e Trindade (1996, p.42), é abordada esta situação de interação entre o presente e o passado, entre o histórico e o fictício:
Os deuses reúnem a sua existência histórica passada com a reatualização mítica de sua continuidade existencial no presente, configurando a promessa e o principio da esperança projetada no futuro terreno ou extraterreno. Essa correlação dinâmica entre história e mito permeia toda a construção dos deuses. Eles são antepassados divinizados ou indivíduos que continuam na existência terrena, atravessando a morte e o nascimento da conversão espiritual, através do ritual de passagem.
François Laplantine e Liana Trindade trazem a análise sobre o processo de fabricação de deuses de forma muito rica e com exemplos de várias religiões do cenário brasileiro, entre elas a Umbanda.
Desses exemplos pode-se falar de prostitutas e malandros, anônimos em vida, que se tornaram heróis depois da morte, tornando-se Pombas-Giras e Exus.
Outro exemplo, também referente à Umbanda, é que personagens que existiram historicamente, como duque de Caxias, dom Sebastião, rei Luís da França e até Tancredo Neves, tornaram-se caboclos, devido a características guerreiras e de “ação social combativa” (LAPLANTINE; TRINDADE, 1996, p.39).
Seguem-se ainda mais exemplos na obra de Laplantine e Trindade, como os negros Felisberto da Cabinda e José Jacó que foram mortos pela polícia e tornaram-se pretos-velhos, ou Maria D'Aruanda e Mãe Conga, que se tornaram pretas-velhas, após terem sido presas e mortas no século XIX, por convidarem pessoas a participarem dos cultos africanos, que eram clandestinos naquela época.
Esses exemplos tem algo em comum com Xangô: não só o aspecto de serem figuras históricas transformadas em mitos, mas também pelo fato de que a “[...] história faz o mito. Como, muitas vezes, são consideradas como a história dos povos dominados, essas transposições são possíveis através do recurso lingüístico da analogia e da metáfora” (LAPLANTINE; TRINDADE, 1996, p.39).
Pelo mito de divinização de Xangô, pode-se encontrar este aspecto de “história do povo dominado”. Este “povo dominado”, pode claramente significar um grupo minoritário, ou desprezado, ou excluído dentro de uma sociedade. Isso combina com a parte do mito que conta que o grupo de partidários de Xangô se tornou minoria na sociedade e eles passaram a ser humilhados pela maioria do povo de Oyó.
Também explica a parte onde é contado que esses partidários de Xangô, humilhados, foram ao povo de Oyó e contaram que Xangô tinha se tornado um Orixá.
Esta seria a forma do mito mostrar que o grupo de Xangô após ter sido afastado do poder e se tornado uma minoria rejeitada, como reflexo de seu rei deposto e obrigado ao suicídio, buscou formas de legitimar sua própria existência como grupo se refletindo na própria divinização de Xangô, ressaltando em seus aspectos divinos as características que Xangô teria tido em vida e que o próprio grupo considerava importantes em seu meio. Provavelmente as características divinas e os simbolismos ligados a Xangô foram se modificando com o tempo e conforme as mudanças e problemas sociais que foram surgindo, como, por exemplo, a atribuição de representante da justiça e da fertilidade, características muito importantes a qualquer povo e necessárias a qualquer bom rei yorubá, colocando talvez um contraponto às histórias de que teria sido deposto por matar seu próprio povo de forma acidental, ou por ter provocado a discórdia e a injustiça, por pura vaidade, entre heróis amados pelo povo.
Neste ponto, há um paralelo que considero pertinente traçar: no que se refere a transformação de um líder de um grupo rejeitado em um deus, tanto os primeiros seguidores de Xangô, quanto os de Jesus foram semelhantes, não deixando de respeitar seus contextos históricos diferentes.
JESUS E XANGÔ
Não pretendo, neste artigo, me aprofundar, no tema “Jesus Histórico”, mas apenas fazer uma curta análise de como a metodologia de estudo do Jesus Histórico, utilizada por estudiosos como John Dominic Crossan, poderia ajudar na metodologia de estudo dos aspectos históricos presentes na mitologia Yorubá.
Os evangelhos apresentam vários estratos redacionais que indicam um crescente avanço da Cristologia, onde Jesus passa a ser visto como deus em determinado estágio. Os evangelhos ainda apresentam muitas informações sobre o contexto histórico das primeiras comunidades do cristianismo primitivo e seus conflitos com o Judaísmo formativo, como por exemplo, no evangelho de Mateus, que tem data redacional entre 80 e 90 d.c. Nesta época o Templo de Jerusalém já havia sido destruído, o Judaísmo farisaico havia tomado as rédeas da missão fazer o próprio Judaísmo sobreviver e os atritos com a comunidade cristã onde surgiu o evangelho de Mateus, que estava ávida por propagar sua mensagem, foram intensos. Essas marcas se encontram no próprio texto de Mateus (BROWN, 2004, p.323). Esses confrontos levaram a um progressivo afastamento entre os judeus-cristãos e os judeus-farisaicos.
A metodologia de estudo atual permite decifrar os vários estratos de produção nos textos do Novo Testamento e vou me concentrar na metodologia proposta por John Dominic Crossan, exposta de forma objetiva por Gabriele Cornelli, no livro “Jesus de Nazaré, uma outra história”.
Crossan utilizou três vetores interdependentes em seu método: Antropologia transcultural (no caso das culturas agrárias do mediterrâneo e seus diversos aspectos e confrontos), história greco-romana-judaica (análise do porquê surgiram mais revoltas judaicas quando Roma estava dominando a Judéia, do que sobre outros domínios anteriores) e arqueologia da Alta Galiléia.
Crossan compara estes três vetores a três grandes refletores que enfocam um mesmo objeto.
Além da aplicação destes métodos, Crossan buscou analisar separadamente o contexto histórico e os textos dos evangelhos de forma que um não influencie o outro, além disso, o estudo do contexto de forma separada antes do texto e sem o texto e através dos três métodos já citados. Por fim, então a análise do texto evangélico buscando as tradições mais antigas e comparando-as com o contexto histórico analisado previamente e de forma independente (CHEVITARESE; CORNELLI; SELVATICI, 2006, p.20-21).
CONCLUSÃO
A análise da relação entre o mito e a história pode resgatar as culturas africanas do preconceito que se estabeleceu com relação ao seu estudo.
Minha proposta é buscar como exemplo o modelo de pesquisa do Jesus Histórico, que já está bem desenvolvido e com isso poderia servir de base para uma montagem de projeto de estudo de personagens históricos contidos na mitologia Yorubá.
Como aprendi na disciplina de Culturas Africanas: “se não existem muitas fontes, então deve-se se ensinar a pesquisar”.
Trabalho elaborado por Sergio Martins Junior - UGF - Disciplina Culturas Africanas
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