sábado, 31 de julho de 2010

DANÇA NO CANDOMBLÉ IV


Os desenhos das danças

As danças são estruturadas em coreografias executadas no xirê, ou durante a incorporação. São muitas e diferentes e só uma longa convivência permite conhece-las e descreve-las. Como pude observar, os movimentos contam e mostram as palavras das cantigas e as características da personalidade dos orixás. A troca da coreografia acontece quando tira-se uma outra cantiga. A forma coreográfica de algumas danças repetem-se, por isso tentarei encontrar o sentido simbólico delas.

Primeira entre todas é a forma do círculo, a antiga roda sagrada, que pode ser encontrada em várias culturas; de fato, em todas as danças extáticas, os dançarinos rodam em torno de um centro, ao tempo em que rodam também sobre si mesmos num duplo movimento de rotação e translação.

A forma do círculo tem uma grande importância na África, Neumann (1981:214), simbolizando a Grande Mãe, que em si contém os elementos masculinos e femininos. Por isso as coreografias referentes as divindades da Água: Oxum e Iemanjá possuem um movimento circular.

É interessante observar que as danças extáticas rodam em sentido anti-horário, esta direção é tomada em quase todas as danças sagradas do mundo, talvez porque abre a brecha entre sagrado e profano, simbolizando a volta à origem.

As danças começam em um grande e lento círculo que vai diminuindo ao longo do ritual com voltas sobre si, durante as incorporações, a simbolizar uma direção para o interno. Como o círculo, a espiral é um símbolo antiquíssimo. A espiral aparece nas rotações que as filhas-de-santo fazem sobre si mesmas, quando incorporam ao longo do ritual e nas danças de Exu. 

A espiral é o símbolo da comunicação (Santos:1977; Pelosini:1994). Assim, quando o orixá possui o corpo da filha-de-santo, realiza-se uma comunicação entre o homem e a divindade. Enquanto o corpo vira sobre si mesmo, a energia do orixá penetra no corpo. Não é por acaso que Exu, a divindade da comunicação [8], roda sobre si mesmo desse modo. A espiral expressa a evolução a partir de um centro; simboliza a vida, porque indica o movimento numa unidade de ordem ou, ao inverso, a permanência do ser na mobilidade. Durand (1972) sugere que, a espiral, simboliza a permanência do ser, através das flutuações da mudança da vida”. 

A espiral poderia simbolizar a procura do próprio espírito ao longo do difícil caminho místico. Partindo de um ponto firme, alcança, com voltas o mundo do sagrado. Não é por acaso que, no candomblé, a espiral encontra-se no okoto, associado a Exu, orixá que expressa a dinâmica da vida, o movimento interno na criação e na expansão do mundo. Exu é o princípio dinâmico da evolução e o mensageiro entre o homem e a divindade, sem ele nada pode ser cumprido.

Conclusões


Os versos de Senghor esclarecem a importância da dança, a dança é a possibilidade de conhecer o outro, dançando exprimem-se o lado mais profundo e misterioso do ser e também liga-se na essência do outro. Um outro que pode ser encontrado dentro de nós dançando-o e pode ser olhado como um espelho. Eis o conceito do "duplo", a sacerdotisa-dançarina está criando o outro e também neste processo de criação-incorporação o vivência intensamente em si mesma e adquire a sua pulsação-ritmo interna.

A dança tem um sentido particular porque é a expressão da divindade e da identidade mais verdadeira da filha ou do filho-de-santo. Cada um possui a própria "identidade-sonora", o próprio duplo no orum, que o fiel encontra no momento da possessão e que aprende a reconhecer e a conhecer através da dança e da música. E pelo corpo que o ser humano começa o caminho do conhecimento e o papel por ele desempenhado no cosmo e na sociedade. Sendo no corpo que o ser humano vivência a própria experiência da vida e junta as várias informações simbólicas sobre o mundo, é no corpo divino, que vivenciando as energias sagradas, ele pode se comunicar com o sagrado, pode juntar o lado sensível com aquele material, porque não dados cognitivos, mas as cores, as formas, os sentimentos internos dão forma á matéria. 

Os ritmos dos atabaques levam o fiel numa viagem que o transforma, porque toma posse do tempo que flui e do espaço que não tem mais lugar definido, o fiel volta ao tempo da origem. A percussão dos atabaques, como sustenta Duplan, é a materialização do tempo e tomar consciência do tempo é conhecer a nossa linhagem, a nossa historia. Cada ser humano é um anel de uma corrente infinita que originou-se com o nosso ancestral-mítico. O corpo age no mundo sagrado através dos movimentos da dança e interage com o espaço e com o tempo. Espaço que refere-se a uma tipografia sagrada onde cada objeto, cada planta remetem a outros planos da existência.

Texto:Rosamaria Susanna Barbára

DANÇA NO CANDOMBLÉ III


A dança do vento



As danças dos orixás são diferentes entre elas. O sentido profundo das danças, como do ritual em geral não pode ser completamente descoberto, porque existem vários significados estratificados e alguns são perceptíveis apenas pelos iniciados.

Nas coreografias de Oiá , os passos são pequenos e rápidos, ela è o elemento ar em movimento, enquanto os braços movimenta-se com força afastando qualquer um da sua frente. O corpo pode ser dobrado para o chão, com uma carga muito ameaçadora, mais freqüentemente é direcionado para o alto. Como diz Augras (1983:153): 

“pode-se observar muitos detalhes que sugerem a fusão, na figura de Oiá-Iansã, de várias divindades, de origens diversas”.... A Oiá relacionada com Oxossi, “... foi provavelmente uma deusa agrária, ligada aos cultos da fecundidade e do boi”.

Oiá viveu em várias épocas, por isso possui ligações com vários orixás masculinos. O fato de ser uma mulher-búfalo deixa bem claro a sua ligação com uma era pré-histórica antiga e a sua relação com Oxossi, rei do mato e com Ogum da mesma estirpe de Odê, o caçador. A sua ligação com Xangô originam-se dá descoberta do fogo que ela doa aos homens. A ligação com Ogum é esclarecida também pelo seu trabalho junto com ele na forja, para manipular o ferro. Enfim, sabe-se que de Omolu, a livre deusa recebe o poder sobre os Eguns, que, em algumas lendas, seriam os próprios filhos de Oiá-Iansã. Todos esses aspectos e outros mais são expressados nas suas danças nas quais existem os seguintes aspectos gerais:

1) - um movimento circular no começo para delimitar o espaço sagrado, no qual ela concentra as energias da natureza: o ar, a água e o fogo. Essa rotação é feita também com movimentos dos braços que viram com o corpo todo, e simbolizam o ar que, em movimento, torna-se vento e, sempre mais rapidamente, furacão e tempestade (água);

2) - um movimento com linhas quebradas e continuamente mutante de direção. Como me explicou uma filha de santo, “o ar está em todo lugar, em cima, embaixo, de lado, em qualquer lugar”. Por seguir o movimento do ar, Oiá-Iansã encontra sempre novas direções, possui o espaço sagrado e ocupa-o agressivamente;

3) - um movimento nervoso, com impulsos súbitos e rápidos, que descreve a eletricidade e a impaciência dessa energia;

4) - um movimento fluido e leve, que expressa o ar leve e a doçura do orixá, levando os espíritos dos mortos ao orum.

O primeiro movimento pode ser entendido a partir da discussão anterior sobre a roda sagrada. Aponta a construção de um espaço mágico, onde se concentra e onde se fazem concentrar as forças da natureza. Também o redemoinho que Oiá-Iansã faz sobre si mesma è o movimento do elemento ar. Ela ocupa muito espaço, sobretudo ao nível horizontal. Às vezes, abre os braços, puxa a cabeça para trás e roda sobre si mesma, desenhando uma espiral com o próprio corpo. Deixa claro, através da sua postura firme, que precisa de muito espaço e que é dona deste. A utilização do espaço é diferente da observada nos outros orixás femininos, Iemanjá e Oxum, que dançam com movimentos de menor dimensão horizontal. Quando Iemanjá locomove-se como onda, por exemplo, ela ocupa um espaço mais em vertical e também seu movimento é um andar e um vir para si mesma, é um movimento mais introspectivo, mais ligado à interioridade, enquanto Oiá-Iansã movimenta-se para o exterior, ela é mais ligada à ação. 

Quanto ao terceiro aspecto, Oiá-Iansã movimenta-se em diagonal. Anda pelo barracão, sem uma meta precisa, qualquer coisa nova a seduz e provoca um repentino câmbio de direção. Esse movimento transmite o frêmito e a curiosidade de Oiá, que está sempre a procura de algo ou de alguém. Pode parecer quase desesperada, nesse seu andar sem meta e com tanta energia. Oiá é um orixá jovem e guerreiro, que abre os caminhos, lutando e limpando as marcas dos Eguns em qualquer lugar.

O último aspecto é a leveza que ela expressa quando afasta os mortos, transporta algo, ou abre o caminho para os seus devotos. Nessa sua qualidade, ela parece mais flexível. Aqui demonstra a sua generosidade, transportando as almas ao orum, para uma nova vida.

Os níveis do seu corpo no espaço, níveis que, do baixo passam para o alto, expressam sensualmente o elemento ar. Nem os pés estão postos no chão. É muito diferente, por exemplo, o nível da dança de Iemanjá, que utiliza mais o nível médio e baixo. Para fazer um exemplo, quando Iemanjá dança representando a onda do mar, o corpo permanece mais nesses dois níveis. Ela expressa o lado feminino da fecundidade, da reprodução, do interno e, por isso, é mais chegada ao nível baixo, aos órgãos sexuais e da reprodução, ao útero, enquanto Oiá é mais ligada ao nível médio e alto por que ela não tem relação com os órgãos internos, mas com a aventura, com a ação livre, com o externo.

Analisando os níveis espaciais, pode-se reconstruir toda a história mitológica de Oiá.

- Quando ela dobra-se para o chão, é a guerreira, que se prepara a lutar ou a mulher-bufalo. Nessa fase, as lendas contam a sua vida afetiva com Ogum e Oxossi, orixás do mato;

- Quando ela levanta-se de nível, representa a sua ligação com Xangô, a magia do fogo;

- Quando o nível é alto, representa o ar, e as lendas contam a sua ligação com os espíritos dos mortos, que ela transporta no orum.

Ela toma consciência do espaço dinamicamente, andando, explorando, procurando. Enquanto Iemanjá é mais estática, para, tem o andamento devagar de uma grande rainha, constrói ao seu redor círculos concêntricos que vão sumindo aos seus limites. Este uso diferente do uso do espaço, provavelmente, origina-se dos diferentes povos que cultuavam as duas divindades. Segundo Leroi-Gourhan (1977: 130):

“A mitologia dos caçadores organiza-se ao redor de um espaço itinerante, como o caminho dos astros ou dos heróis, enquanto a mitologia dos agricultores-sedentários organiza-se ao redor de um espaço radiante, como o paraíso sobre uma montanha com a árvore da sabedoria ao centro e quatro rios que vão aos limites do mundo”.

As danças de Iemanjá são muito diferentes, são constituídas por movimentos amplos, os pés posam mais no chão, a demostrar o equilíbrio, enquanto os braços movimenta-se com grande fluidez. O corpo está levemente dobrado para o chão em uma forma redonda a lembrar a forma materna da deusa e a sua disponibilidade em acolher e em conduzir, o corpo todo expressa o movimento rítmico das ondas, mas também o mistério da água que traz do fundo do mar para as superfícies as riquezas e o encanto do mar. 

DANÇA NO CANDOMBLÉ II



continuação......


O corpo sagrado 



O homem está em contato contínuo e harmônico com a natureza, que fala com os mortais através das suas vibrações, captadas pelo corpo, por isso ele não é negado, mas vive o seu compromisso com o mundo. Os seus ritmos são acompanhados de uma experiência sensual contínua. Eis por que o corpo é decorado para mostrar a sua importância e resguardá-lo dos ataques mágicos externos, protegendo as aberturas com decorações ou jóias, como os brincos cheios de ‘pendentes’.

O corpo sagrado é o templo por excelência, é simbolicamente o "trono" e, por isso, o das divindades (típica é a representação de Hísis sentada) é sempre representado (Neumann, 1981:101) como: “um trono em si”. Portanto as cadeiras são uma área sagrada do corpo humano, onde a bacia e as nádegas representam a fertilidade.

Centro da irradiação simbólica portanto é o corpo, expressão das energias da natureza e em unidade com o mundo natural que o abrange. Daí a sua função de busca das energias cósmica e da expressão delas, vivenciando-as.

Sendo o corpo humano uma cópia das formas e das energias do cosmo, os próprios elementos ( fogo, ar, água, terra e mato) juntam-se segundo arquétipos diferentes. As palavras do biólogo Pelosini (1994:94) aplicam-se bem à concepção africana do corpo humano : 

“...o universo (macrocosmos) e o homem (microcosmos) são criaturas similares, que obedecem às mesmas leis como um tipo de fantástico e perfeito relógio cósmico que marca harmoniosamente os ritmos”.

O corpo é então um centro de forças opostas que devem estar em equilíbrio e em relação complementar. Na mesma maneira a pessoa pode ser percebida como o resultado do equilíbrio das diversas partes do corpo, símbolo da comunicação entre o mundo natural e aquilo sobrenatural.

Mas o corpo adquire um sentido também na interação com o espaço e com o tempo. Espaço atravessado pelas energias da natureza que criam campos energéticos que colocam cada elemento em relação com o outro, segundo o principio fundamental da existência africana que propõe uma visão de mundo ligada a comunicação entre todos os seres humanos e não humanos. 



A dança cosmica 



Shiva criou o universo dançando, assim como nos mitos gregos Eurinone, Deusa de Todas as Coisas, emergiu nua do Caos, mas não vendo substância em redor onde firmar os pés, apartou do céu o mar, dançando solitária por sobre as suas ondas. (Graves, 1990:31). Nas lendas dos Iorubás, os orixás também gostavam muito de dançar durante as festas ou para atrair alguém. 

Entendem-se assim que não só no pensamento africano, mas também no oriental e grego o universo é percebido em contínuo movimento, formado por ondas vibratórias organizadas no "verbo" da Divindade Suprema que expressa-se na respiração com os dois movimentos básicos da natureza viva: expansão e contração. Movimentos fundamentais da vida do cosmo, das plantas, dos animais e do homem. Belinga diz (1993:11): 

"Nas nossas tradições o ‘verbo’ possui três elementos que o determinam e que permitem a sua colocação seja entre as formas artísticas, seja na comunicação interpessoal. Três são as formas nas quais o "verbo" manifesta-se: a palavra, que caracteriza a expressão interior e exterior do pensamento; a música que expressa a beleza; e por fim a dança, que é em função seja dos ritmos dos instrumentos seja do ritmo interior do ‘verbo’ ”.

Sendo o candomblé de tradição oral, a visão de mundo é passada por meio do corpo através de um longo percurso de aprendizagem e de incorporação dos fundamentos religiosos que o propõe como instrumento de memória para a comunidade e de sabedoria para o fiel. Por isso a dança e a música associadas ao mito, tem a função de uma literatura nas sociedades de tradição oral e possuem uma pluralidade de sentidos: a história da etnia, a visão do mundo, o ethos do grupo, a organização da sociedade e as crenças religiosas e várias funções como aquela de fortificar o grupo e o conhecimento da comunidade sobre ela mesmo, além de expressar a identidade individual e espiritual da dançarina.

Esta pluralidade de sentidos é expressa por meio do símbolo principal da dança: o corpo da sacerdotisa-dançarina, um microcosmos, no qual encontra-se todas as energias da natureza em um equilíbrio único e específico de cada indivíduo, espelho das energias do macrocosmos. A dança sagrada contempla dois aspectos: um lado exterior e um lado interior. O primeiro é transmitido por meio dos movimentos, as roupas litúrgicas e os objetos sagrados. O segundo é a transformação interna em algo outro, diferente da identidade cotidiana, é o duplo espiritual que encontra-se no orum.

O segundo aspecto exterior são as roupas litúrgicas, os materiais com os quais são costurados nos contam as fontes de subsistência (por exemplo uma roupa de conchas mostra que aquela comunidade vive de pesca) e nos indica qual seja a sua posição na hierarquia social (através da posição de algumas partes do vestido percebe-se se são mulheres iniciadas ou não e há quanto tempo; se são filhas de uma divindade feminina ou não, etc.).

O terceiro aspecto, aquilo dos objetos sagrados relata: a qualidade do orixá, a sua ligação mitológica e a sua função cósmica, por exemplo o abebé, um leque e a espada de Iemanjá relatam seja o lado guerreiro da deusa seja a sua ligação com o mundo feminino relatado por meio da forma redonda do abebé e da cor de prata do mesmo que lembra a lua, o elemento do feminino por excelência.

O aspecto interior da dança é a metamorfose que acontece dentro da sacerdotisa ao longo do transe. Este fenômeno, do qual muito se escreveu, mas sem alcançar uma explicação exaustiva devido ao fato de ser uma experiência de fé, intima e preciosa e por isso dificilmente compreendida por aqueles que não a experienciaram.

Tanto a música, quanto a dança que a acompanha expressam o caráter do orixá e os acontecimentos da sua vida. As histórias míticas, as qualidades, as virtudes e as falhas dos orixás são passadas aos fiéis através das letras das cantigas. A concentração e a busca interior permitem expressar a própria música e a própria gestualidade, que é única e pessoal e que corresponde à "qualidade" de cada orixá. 

Assim, por exemplo a música de Oiá é caracterizada por grande rapidez, agressividade, determinação e grande variabilidade, percebe-se assim a personalidade da deusa que expressa o elemento ar em movimento. O uso da polirritmia no toque de Oiá tira a possibilidade de encontrar uma pausa no ritmo e dá ao toque a sensação da impossibilidade de botar os pés no chão. Enquanto a musica de Iemanjá é caracterizada por movimentos lentos e amplos, que expressam o movimento das ondas do mar. Por sendo em ritmo binário a sensação é aquela de um movimento circular, expressado também na dança.

Na festa pública do candomblé são reconhecíveis dois tipos de dança:



a) um primeiro tipo, no começo da festa, o xirê (literalmente “brincar”), onde se canta para todos os orixás um mínimo de três cantigas, acompanhadas pelas danças. Cada orixá possui cantigas e gestualidades particulares, pertencentes só a ele. Essas danças são previsíveis, porque são executadas ainda em estado consciente e seguem um padrão fixo, a depender do orixá dono da festa. São danças de invocação e de preparação, poderia ser equiparada a uma meditação dinâmica. Os movimentos são de dimensão pequena e chamam-se “dançar pequenino”. Servem para concentrar as energias, mas também para as pessoas se centrarem e para prepararem-se a receber o orixá;

b) um segundo tipo, são danças realizadas durante o transe; é o próprio orixá que dança nesse momento, seguindo o ritmo sagrado dos tambores. Nessa segunda parte, o andamento da festa não é fixo porque, apesar de existir um padrão, não se pode saber exatamente quais serão as coreografias que os orixás irão dançar, pois o andamento depende de varias causas visiveis e não.

Cada orixá possui um toque característico que o identifica mais varias cantigas com ritmos diferentes que são executados com outras frases coreuticas. Então cada divindade possui um proprio repertório de danças e um repertório próprio de cantigas nas quais são relatados os fatos míticos da sua vida. Assim que cada casa de candomblé possui um mínimo de 500 cantos liturgicos, por isso è muito difícil ter uma idéia clara do desenvolvimento do ritual. O orixá mostra ao público a sua história mitológica, redistribuindo a energia vital, axé e trazendo o mundo sagrado de volta ao cotidiano. 

continua...........

DANÇA NO CANDOMBLÉ I









DANÇA, RESGATE CULTURAL E APRENDIZADO
A dança africana é uma forma de expressão artística muito complexa, inserida num
contexto dentro da sociedade africana e afro-descendente mundial. Sua força, beleza e vigor podem ser sentidos tanto no sapateado Muchongoyo de Zimbabwe, nas danças de máscaras Geledé na Nigéria, no samba e capoeira do Brasil, na rumba Cubana, nas danças dos saltitantes Zulus. A magia que une essas danças de lugares e povos tão diferentes pode ser chamada de um instinto de comunhão que une a raça negra espalhada pelo planeta, através de um vínculo ancestral por memória, epopéia e tradição oral.
No Brasil coube ao Candomblé, preservar a maior parte das danças sagradas africanas. No culto religioso a dança possui um papel fundamental, pois é ela que RELIGA o homem ao SEU LADO DIVINO, é a dança que leva a uma compreensão e comunhão com a Natureza, a Vida.
Existem duas correntes básicas que tentam explicar o aparecimento dos Orixás. Uma delas remonta a criação do Universo, a outra narra que os Orixás foram seres importantes, donos de grande poder em vida, que morreram de maneira incomum, tomando o caráter de um dos elementos da natureza. O Orixá Xangô foi Rei de Oyó, o Orixá Oxóssi, rei de Ketu.
Nas danças os Orixás mostram seu poder e suas estórias através dos movimentos:
• Xangô, deus do fogo e da justiça, pode dançar com seu oxê, um machado de dupla ponta fazendo justiça na terra ou com o fogo que gera a vida;
• Os braços de Oxóssi, deus da caça, assemelham-se a flechas e suas pernas parecem
cavalgar enquanto caça o alimento para a subsistência de seu povo;
• Oya-Iansã, deusa dos ventos e da magia, espalha os ventos com seus braços e saia, numa dança guerreira e sensual;
• Oxum, deusa da beleza do ouro e das águas doces, banha-se nas águas dos rios enquanto penteia-se balançando suas pulseiras e olhando-se no espelho;
• Iemanjá, deusa-mãe dos Orixás, a senhora do mar, segura seus filhos queridos nos braços;
• Nanã dança com o Ibiri carregando-o como se ninasse um bebê;
• Ogum, deus da guerra, da forja, segura suas duas espadas guerreiras em suas mãos: com a primeira mata seus inimigos, com a segunda limpa o sangue da primeira; etc.
A dança negra reverencia as origens através da repetição dos gestos ancestrais que foram passados de pai para filho, mantendo viva a ligação com os antepassados que praticaram os mesmos gestos.
A dança africana possui sete dimensões estéticas que podem ser percebidas inclusive em técnicas modernas que se inspiraram na dança tradicional:
o POLIRRITMIA – mostra que cada parte do corpo movimenta-se com um ritmo e com uma forma diferente, proporcionando o conhecimento do ritmo próprio e variante de cada aspecto da natureza.
o POLICENTRISMO – indica que há vários centros no corpo humano que dão impulso à dança, assim como no Universo existem vários centros energéticos.
o CURVILINEARIDADE – encontrada em várias danças e em vários movimentos, uma vez que ao círculo é conferido o poder sobrenatural, criando a estabilidade fora do tempo.
o DIMENSIONALIDADE – é entendida como a possibilidade de exprimir as várias camadas dos sentidos: olhar, ouvir que seria o lado externo dos movimentos ligados com uma outra dimensão mais interna e espiritual, sintetizada pela parte central do corpo.
o REPETIÇÃO – como forma de intensificar e provocar o caráter de atemporalidade, quando o gesto permanece o mesmo apesar do passar dos anos, e de continuação destes gestos no futuro.
o ASPECTO HOLÍSTICO – na dança os movimentos, as partes do corpo utilizadas, as roupas vestidas, a música, cada elemento têm um sentido próprio, porém juntos simbolizam algo outro. Uma dança realizada para uma simples diversão também pode remeter a outra coisa, numa corrente simbólica infinita.
o MEMÓRIA ÉPICA – é a história da tradição e da antiga harmonia da natureza, da época na qual não existiam diferenças, nem separações. Memória que têm que ser lembrada e fortalecida. (Asante; 1996:71)
A dança tradicional africana gerou técnicas precisas de aprendizado na dança como a
técnica de Katherine Dunham - baseada no folclore haitiano, Mundalai, o Jazz Norte-Americano e o Street Dance.
No Brasil, a dança negra não está mais vinculada apenas ao Candomblé. A capoeira,
samba, axé, os blocos de afoxé e carnavalescos bebem nas águas da dança tradicional e religiosa africana.
A dança no candomblé é um dos caminhos que reintegra a energia cósmica do devoto ao seu Orixá de origem, portanto ao Orum, morada dos deuses que um dia de lá partiram para criar o nosso mundo, o Aiê.
O candomblé è uma das religiões afro-brasileiras que mais manteve as caracteristicas de uma religião africana: a adivinhação, o sacrificio/oferenda, o transe e a dança com a musica. Salvador de Bahia é considerada no Brasil o berço desta religião pela quantidade de população de origine africanas que vive na cidade e no estado, o 80% das pessoas é discendente dos escravos que foram deportados nos seculos passados nesta região. Existem mais de oito mil terreiros, casas, de candomblé só na cidade de Salvador, por isso a cidade foi chamada a Roma negra por uma grande mãe de santo, a finada Mãe Aninha que fundou em 1910 um dos mais tradicionais terreiros da Bahia, o Axé Opó.Afonjá.
A pesar da discussão entre estudiosos sobre a colocação do candomblé nas religiões politeistas, existe um grande debate sobre este assunto, pois muitos antropologos acham ser um tipo de monoteismo (Carneiro, 1947), existe um principio primo, Olorum ou Olodumarê que originou a terra. Os orixás foram enviados por ele para construir a terra, a natureza e os seres humanos. Por causa de uma interdição não respectada os dois mundos o aiyê, a terra, e o orum, o mundo dos espiritos, foram separados, mas por causa da tristeza dos seres humanos e dos deuses que não podiam mais se encontrar, teve origine o candomblé com a finalidade de juntar de novo os dois mundos nas festas que periodicamente são organizadas para os orixás.
As culturas tradicionais não-ocidentais e as culturas minoritárias européias propõem o corpo em um sentido simbólico, não no sentido da psicanálise que fala dos símbolos para sublinhar uma outra separação, aquela entre consciente e inconsciente, mas no sentido de eliminar a fronteira que separou a alma do corpo, colocando-os junto. (Galimberti, 1993:13). A África, o oriente, as culturas indígenas, as culturas mediterrâneas colocaram sempre uma grande atenção e cuidado ao corpo percebendo-o como um todo em relação com o mundo no qual vive. Por isso durante o transe o corpo da filha ou filho-de-santo torna-se o próprio orixá superando a dicotomia cartesiana corpo/espirito, forma/conteúdo. Mas esse corpo além de experiência vivida é também uma superfície de escritura, no qual a sociedade escreve o texto das suas leis. Cada cicatriz, cada enfeite é um traço inapagável, um sinal que faz do corpo uma memória. Por isso as sociedades não-ocidentais iniciavam e iniciam os adolescentes ou os seus membros à vida social da comunidade com vários tipos de rituais, desenhando ou marcando o corpo com pinturas ou incisões, porque o corpo tem que ter o sinal do grupo, o traço da passagem da juventude à maior idade ou da entrada em um grupo esotérico.
Por isso a estética ritual possui uma importância fundamental seja na preparação da festa, seja nos trajes litúrgicos. É uma estética padronizada em modelos fixos e transmitidos no tempo que nos falam da história e da memória do grupo. A arte ritual funciona como representação do invisível, sendo o seu objetivo aquilo de chamar as forças imateriais.
Arte e religião
As civilizações africanas são caracterizadas por uma visão holística e simbólica da vida. Cada ser vivente e não é ligado ao outro numa corrente infinita de sentidos nos quais cada elemento existe em função do outro, participando assim à dinâmica do cosmo, em uma eterna procura e reestabelecimento de harmonia e de equilíbrio.
É só a arte que tem o poder de traduzir com as formas o sagrado. Como sugere Marchiano (1977:217):
“A forma...., é o único meio humano que permite a transcendência) do nível sensível, a não identificação com aquilo que muda, a conversão do estético no teorético”.
Na tradição do candomblé, o conceito do belo ocidental não existe, mas como sublinha Luz (1995), os Nagô definem o belo com a palavra odara, que significa bom, útil e bonito. Esteticamente um ser humano ou um objeto é belo porque traz consigo uma determinada qualidade e quantidade de axé e realiza assim uma comunicação entre ele e a comunidade.
Os estudiosos da arte e das civilizações africanas, como a historiadora Welsh Asante (1985) e Thompson (1974) reconhecem na dinâmica o aspecto mais importante e profundo da estética dessas culturas, seja na dança, seja na arte visível e gráfica. A dinâmica é um dos conceitos fundamentais da ontologia africana para a qual existe a possibilidade da mudança e da transformação na vida por meio da comunicação com o mundo espiritual, aquele dos orixás.
Outro conceito fundamental na filosofia da existência africana é a importância do grupo, para que a comunidade viva cada fiel deve participar seguindo o papel que lhe pertence a nível espiritual e terreno.
A Asante explica os critérios estéticos das artes africanas subjacentes a dança e a música. Primeiro entre todos a polirritmia: cada parte do corpo movimenta-se com um ritmo diferente, os pés seguem a base musical, acompanhados pelos braços que equilibram o balanço dos pés. O corpo pode ser comparado a uma orquestra que, tocando vários instrumentos, harmoniza-os numa única sinfonia. Outra característica fundamental é o policentrismo que indica a existência no corpo e na musica de vários centros energéticos, assim como acontece no cosmo. A dança africana é um texto formado por várias camadas de sentidos. Esta dimensionalidade é entendida como a possibilidade de exprimir através e para todos os sentidos. No momento que a sacerdotisa dança para Oxum, ela está criando a água doce não só através do movimento, mas através de todo o aparelho sensorial. A memória é o aspeto ontológico da estética africana. É a memória da tradição, da ancestralidade e do antigo equilíbrio da natureza, da época na qual não existiam diferenças, nem separação entre o mundo dos seres humanos e os dos deuses. A relevância da obra artística é dada pela transmissão da harmonia, que liga algo dentro e algo fora, o corpo e o espírito, a natureza e o homem. Mas sem a inspiração divina o escultor, o dançarino, o musico não poderiam criar o "momento artístico-religioso".
A repetição do padrão-musical, não é uma simples repetição, mas a criação daquela energia que os fieis estão invocando. A repetição dos movimentos produz o efeito da intensificação que leva ao encontro com a divindade, facilmente observado nos rituais. O mesmo ato ou gesto é praticado num número infinito de vezes, para dar à ação um caráter de atemporalidade, de continuação e de criação continua. Outra característica é a ligação com a terra, vivenciada como elemento materno. Nas danças africanas o contato contínuo dos pés nus com a terra é fundamental para absorver as energias que deste lugar se propagam e para enfatizar a vida que tem que ser vivida agora e neste lugar, ao contrario das danças ocidentais performadas sobre as pontas a testemunhar a vontade de deixar este mundo para alcançar um “outro”.
continua.............

sexta-feira, 30 de julho de 2010

ATABAQUES - PARTE II







Atabaques Bantu

..... as casas de Tradição Bantu chamam seus tambores de Jingomas (plural de Ngoma), os de afinação grave são chamados “Roncador” (embora essa definição provavelmente venha do Iorubá/gege: “Ilu Rum”, que significa “Tambor que ronca”), os de afinação média, “Socador” e os de afinação aguda “crivador”. 

O hábito de se usar os tambores Jingoma em trio é proveniente, prinicipalmente, do povo Tchokwe e dos Lunda Kioko (que deu origem, no Brasil, ao culto Omolokô). Outros povos da cultura Bantu como Nkongo, Ngola, Shona, Moçambique (Yangana), Zulu, Bemba (Zâmbia), Ajaua (Zimbábue), Lingala (Zaire) e outros faziam uso de quatro ou cinco Jingomas.. 

Na antiguidade africana e brasileira encontramos as seguintes denominações para o trio de tambores:

Ngoma Tixina = Grave
Ngoma Mukundu = Médio
Ngoma Kasumbi = Agudo

ou

Ngómba = Grave
Ngónje = Médio
Gongê = Agudo

Na África Bantu, esses tambores possuem o nome genérico de Ngoma, mas há tambores com funções e nomes particulares:

Ngoma Chikulu (Grave), Ngoma Nchinga (Médio) e Ngoma Shingomane (Agudo) – Tambores usados pelos Shangana e pelos Chope em Moçambique; 

Há também os tambores Bikula, instrumentos de 80 centímetros a um metro, tocados no alto, de pé, e que só existiam nas casas dos grandes chefes.

Os Zimpungi, chamados de “pontas de elefante”, que também são três (Nuni, Nkazi e Muana - marido, mulher e filho). 

Há ainda em algumas regiões de Angola, o grande tambor Ngundu-lilu, de três ou quatro metros de altura e os tambores comuns chamados Zindundungu, tambores menores.

No Brasil encontramos ainda as seguintes denominações (que variam de terreiro a terreiro): Candongueiro, Tantã, Macumba, Caxambu, Tambor-de-crioulo, Carimbó, Tambu, Encomba, Incomba, Ingono, Pai João, Mãe Joana, Sangaviva, Gambá, Zampé, Guzuunga, Chama, Chamador, Cadete, Pai Tôco e Agida. Na América Central são encontrados como Encomo, Makuta, Bencomo, Cosilleremá, Tahona, Tumbadeira, Bongô (tambor de origem egípcia) Quinto, Tumbadora, Tumba e Conga. 

Esses últimos termos foram usados comercialmente para definir, genericamente, no Brasil, os tambores de origem Bantu e gradativamente estão substituindo os atabaques nos terreiros Angola/Congo e nas Umbandas, principalmente. 


Os Yorubá chamavam seus tambores, genéricamente de Ilus, embora esta denominação seja mais comum nas tradições de origem Nagô/Ijexá, com seus tambores cilíndricos: Yan (tambor grave), Melé (tambor médio), Oncó (tambor agudo). As nações Yorubás na África, possuíam um tambor especial dedicado a cada divindade, ou seja, cada orixá possuía seu tambor. Seri muito extenso colcarmos aqui todos os nomes dos tambores por lá utilizados, já que entre os Yorubás existem cerca de 600 divindades. Lembramos apenas que alguns nomes de ritmos ritualísticos que existem no Brasil, na África são nomes de tambores, tais como o Igbim e o gigantesco tambor Sató.

Os nomes Rum (tambor grave)/Pi (tambor médio)/Lé (tambor agudo) provém, originalmente, dos Fon/Gêge e foram apropriados pela cultura Yorubá e Bantu no Brasil. Os atabaques brasileiros são conhecidos com estes nomes.



Fonte: texto Mestre Obashanan
http://www.formspring.me/Obashanan/q/281944174

domingo, 16 de maio de 2010

ELEMENTOS SAGRADOS - A ÁRVORE SÍMBOLO DA CONECTIVIDADE ENTRE O ORUN E AIYE



BAOBÁ



A árvore é um dos símbolos fundamentais das culturas arcaicas. Os velhos baobás africanos de troncos enormes suscitam a impressão de serem testemunhas dos tempos imemoriais. Os mitos e o pensamento mágico-religioso yorubá têm na simbologia da árvore um de seus temas recorrentes. Na sua cosmogonia, a árvore surge como o princípio da conexão entre o mundo sobrenatural e o mundo material. As árvores “(…) estão associadas a ìgbá ì wà ñû – o tempo quando a existência sobreveio – e numerosos mitos começam pela fórmula ‘numa época em que o homem adorava árvores’…”.
Uma das versões do mito cosmogônico relata que foi através do Òpó-orun-oún-àiyé – o pilar que une o mundo transcendente ao imanente – que os deuses primordiais chegaram ao local aonde deveriam proceder o início do processo de criação do espaço material. Este pilar – muitas vezes simbolizado pela árvore ou por seu tronco – é uma figura de origem, é um signo do fundamento, do princípio de todas as coisas, elemento de conexão entre a multiplicidade dos “mundos”. Mircea Eliade vai chamá-la de “Árvore do Mundo”, “Axis Mundi”, “Árvore Cósmica”, cuja função é a de elidir as diversas regiões do cosmo. Para boa parte das tradições místicas e religiosas, os “mundos” dividem-se nos espaços inferiores ou infernais, intermediários ou terrestres e superiores ou celestes. A concepção católica cristã ainda compreende a existência de outros “territórios” como o purgatório ou o limbo.
A tradição yorubá fala na existência de nove espaços – orun mýsûûsán -, estando quatro deles localizados sob a superfície da Terra – îrun isalû mýrûûrin. Uma das divindades de origem yorubá de culto amplamente disseminado no Brasil – Oya Ìgbàlû, mais conhecida como Yásan, cujo nome deriva da contração da expressão ì yá-mesan-orun, a mãe dos nove orun – possui forte relação com a origem do orun e com a árvore que liga os “mundos”. Esta deusa num de seus epítetos é chamada de Alákòko, a senhora do òpákòko, demonstrando a sua relação com a árvore-mundo yorubá.
Um dos mitos da criação conta que para cada ser humano modelado (a matéria primordial era o barro) por Orisala criava-se simultaneamente uma árvore. Òrì ñàlá é o grande pai da criação yorubá. Como divindade primordial, está ligada a cor branca, e por isso é conhecido como um òrì ñà-funfun (literalmente òrì ñà do branco). É interessante notar que em Cuba há um costume de solicitar aos turistas estrangeiros que plantem uma árvore antes de retornarem aos seus locais de origem, como forma de permanecerem simbolicamente no país.
Um outro mito relata a origem das árvores sagradas, especialmente o Iròkò. O Iròkò é uma das espécies vegetais mais imponentes da terra yorubá. O ì tan coloca uma interessante questão ontológica, propondo igualmente a possibilidade de se pensar numa ontologia do sagrado na perspectiva das expressões religiosas arcaicas. O mito, ao afirmar que “na mais velha das árvores de Iroco, morava seu espírito”, coloca uma nítida distinção entre ser e ente. Entre uma essência transcendente do sagrado e a sua presença material no mundo, na mesma medida em que na mais antiga das árvores mora o espírito. Porém, em toda a descendência desta velha árvore habita o princípio dela mesma: não só geneticamente, mas principalmente a sua sacralidade.
“No começo dos tempos, a primeira árvore plantada foi Iroco. Iroco foi a primeira de todas as árvores, mais antiga que o mogno, o pé de obi e o algodoeiro. Na mais velha das árvores de Iroco, morava seu espírito. E o espírito de Iroco era capaz de muitas mágicas e magias. Iroco assombrava todo mundo, assim se divertia. À noite saía com uma tocha na mão, assustando os caçadores. Quando não tinha o que fazer, brincava com as pedras que guardava nos ocos de seu tronco. Fazia muitas mágicas, para o bem e para o mal. Todos temiam Iroco e seus poderes e quem o olhasse de frente enlouquecia até a morte.(…)”.
No Candomblé encontramos uma importante manifestação da fitolatria. Em vários terreiros da Bahia encontramos grandes e imponentes árvores Iròkò plantadas no espaço sagrado. Deve-se observar que a árvore em si não é o deus. Para tornar-se sagrada, é preciso cumprir os rituais para que o deus encarne na planta. Após as oferendas e sacrifícios, a árvore deixa de ser um simples vegetal e passa a ser a morada-templo do deus Iròkò. Como um local santo, passa a ser ornamentado como tal: com grandes laços de panos brancos amarrados em seus galhos. Junto a suas gigantescas raízes expostas, são colocadas oferendas: alimentos, recipientes com água, sacrifícios votivos são realizados; enfim, tudo o que é consagrado ao deus.
Roger Bastide em duas obras distintas – Imagens do Nordeste Místico em Branco e Preto e em Candomblé da Bahia – faz uma importante alusão ao interdito de tocar em uma árvore Iròkò consagrada. Um dos mitos relatam uma terrível punição sofrida por uma mulher que teria tocado o Iròkò sem ter cumprido o período de abstinência sexual antes de fazer as oferendas ao deus (foi engolida pelo tronco da árvore). Igualmente, mutilar os galhos da árvore a faria sangrar. Ouvi um conhecido pai-de-santo lamentar-se de que após ter cortado o Iròkò existente no quintal de seu terreiro e que ameaçava uma das casas, a morte de sua mãe carnal foi imediata. O sacerdote nitidamente estabelecia uma correlação entre a infração cometida e a morte como punição para o ato.
“Alguns terreiros possuem igualmente uma árvore sagrada que é vestida, enfeitada de fitas, coberta de tecidos, rodeada por um círculo mágico – a gameleira que os ‘nagôs’ chamam de Iroko e os ‘gêges’ de Loko; se se cortasse um ramo dessa árvore brotaria sangue, pois nesse caso a árvore é um deus”.
“A fitolatria fetichista entre os afro-brasileiros está representada em primeira linha, no culto à gameleira (ficus religiosa?), que os nagôs chamam Iroco e os gêges, Lôco. Nos bosques e nas matas, nos caminhos do Garcia, do Retiro, do Rio Vermelho, etc., na Bahia, a gameleira Irôco é preparada como fetiche, a quem tributam as homenagens do culto. Irôco, preparada, não pode ser tocada por ninguém. Torna-se sagrada, tabú. Se a cortarem, correrá sangue em lugar de seiva e será fulminado aquele que o fizer”.
Sem dúvida alguma, Roger Bastide foi um dos mais perspicazes observadores dos menores detalhes da tradição dos orixás. Foi talvez o autor que percebeu de forma mais clara a idéia da árvore como símbolo da conectividade entre os mundos imanente e transcendente, segundo a tradição religiosa afro-brasileira. Numa de suas obras fundamentais relata: “Encontrei até num terreiro o mito simbólico de uma árvore cujas raízes atravessariam o oceano para unir os dois mundos; seria ao longo de tais raízes que viriam os Orixá ao serem chamados”. Esta idéia é um pouco mais desenvolvida por Raul Lody, numa extensão simbólica do Iròkò aos princípios de conexão, sustentáculo da tradição, origem e fundamento, suporte “tecno-sacro”, via de comunicação e transporte dos deuses:
“A árvore simbolizada, o tronco ereto e viril – membro fecundante da terra e do céu, elo, cordão umbilical entre o orum e o aiê, na concepção restrita yorubá -, marca espaços públicos dos Candomblés mais antigos e tradicionais. Alguns espaços privados são também sinalizados com o mastro, poste, tronco rememorizador da árvore geral e fundadora da vida. É o elo entre o céu e a terra (…) por onde vêm os orixás, voduns e inquices aos terreiros”).
Ainda como símbolo e “suporte tecnológico sobrenatural”, a árvore é indicada por Bastide como território transitório entre a vida e a morte, entre a morte e a renovação da vida: “(…) as almas das filhas-de-santo mortas vêm habitar em seus ramos de onde talvez se desprendam para entrar no ventre de uma mulher que passa e continuar, assim, o ciclo das reencarnações, como sucede na África”. Esta nota já havia sido melhor explicada por Arthur Ramos em 1934 – época do primeiro Congresso Afro-Brasileiro -, a partir das observações feitas no Terreiro da Pedra Preta. Esta casa de Candomblé nada mais era do que o terreiro do legendário Joãozinho da Goméia (pai-de-santo radicado no Rio de Janeiro após 1946, famoso por suas relações pessoais com Getúlio Vargas e Juscelino Kubitschek), nesta época mais conhecido pelo nome de uma das suas entidades – o Caboclo Pedra Preta. No breve comentário de Roger Bastide ainda se coloca uma questão pouco discutida no Candomblé – a idéia de reencarnação -, cuja natureza é bastante singular e em nada se relaciona com a idéia de evolução do espiritismo de Allan Kardec, tão difundido no Brasil.
“No terreiro Pedra Preta pode ser visto, um tanto afastada, uma árvore escavada pela velhice, e que forma uma espécie de nicho. É lá que as almas das filhas de santo que morreram vão se refugiar no lapso de tempo que separa seu último momento de incorporação ao corpo e seu abandono definitivo da terra. Garrafas de óleo, aguardente, cachaça, água, vasilhas e pratos muitas vezes partidos, por analogia com a morte destruidora, ossos dispersos, provam o culto dos fiéis. Ninguém pode se aproximar dessa árvore mortuária, sem cortar as folhas consagradas de um matagal vizinho, e atirá-las em oferenda àquelas que, no terreno ao lado, dançavam antigamente sob os ditames divinos”.
Esta relação da árvore sagrada como vínculo e conexão entre os territórios da vida e da morte reportam ao princípio feminino. De alguma forma, esta relação já havia sido sinalizada ao falar em Oya Ìgbàlû, divindade que comanda o mundo dos mortos. Oya é uma deusa que tem o poder de dominar os espíritos dos ancestrais – Baba Égun. O também supracitado òpákòko é consagrado como um dos locais de culto dos ancestrais.
As grandes deusas cultuadas no Candomblé guardam uma forte relação com entidades sobrenaturais chamadas Ìyá-mi-Oxoronga. As Ìyá-mi-Oxorongá são senhoras de imenso poder – são as grandes mães ancestrais, detentoras das forças terríveis e destruidoras das mulheres. São também denominadas ëlëyë: as senhoras dos pássaros, símbolo de seu poder. Os mitos revelam que estas divindades chegaram ao mundo nos tempos da criação. Numa das belas narrativas coletadas por Pierre Verger com os bàbáláwo da Nigéria, demonstra-se a relação de Ìyá-mi-Òñòrîngà com as árvores, às quais chamam os velhos sacerdotes africanos das artes divinatórias de pilares da terra.
Determinadas árvores sagradas são identificadas no mito como os “Pilares da Terra”, portanto “Axis Mundi”, conforme indica em outra perspectiva Mircea Eliade:
“Instalação e a consagração do tronco sacrificial constituem um rito do Centro. Identificado à Árvore do Mundo, o tronco torna-se, por sua vez, o eixo que une as três regiões cósmicas. A comunicação entre o Céu e a Terra torna-se possível por intermédio desse sustentáculo”(14). Estas árvores “pilares da terra” cumprem na narrativa a função de conectar estas forças do mundo sobrenatural ao mundo imanente. Com as raízes na terra, no obscuro do subsolo gerador da vida, e com a copa nos altiplanos sagrados, se possibilita o poder destas entidades extra-mundo no àiyé.
Destarte, enquanto conexão entre o espaço da existência humana e território do sagrado, habitat dos deuses, as árvores cumprem na concepção de mundo yorubá e do Candomblé um papel fundamental no processo de manutenção da vida e do equilíbrio da coletividade. É fonte viabilizadora do intercâmbio e da comunicação em múltiplas dimensões, entre os îrun, dentre os quais a Terra – àiyé – é um deles. Esta função não se insere num caráter ecológico construído ideologicamente, mas numa perspectiva de que a árvore sagrada é um deus vivo e presente, sinalizando que o primado do sentido de ser faz da pre-sença algo pertinente também ao vegetal enquanto ente sagrado, cujas origens remontam ao ser – árvore primeira -, fundamento de toda a sua geração sacralizada no rito.
Esta mesma sacralidade está presente nos aspectos sincréticos das manifestações religiosas afro-brasileiras. A partir da interpretação de Mircea Eliade acerca do simbolismo da Cruz, é possível pensar no significado recorrente da devoção ao Senhor do Bonfim em Salvador (Bahia), associado à Oxalá. oxalá é um dos orixá-funfun (portanto divindade do branco), deus primordial, criador, chegado ao mundo imanente através da árvore – òpó Îrun oun àiyé -, pilar de sustentação dos dois planos da existência. A Cruz também é símbolo de conexão entre os homens e o Altíssimo. Òñàlá também é ligado à morte – o criador também é chamado Bàbá Ikú, o pai da morte. O branco é a cor do luto para os yorubás. O Senhor do Bonfim está morto, crucificado; porém é a promessa da vida em outro plano da existência. Num terreiro que visitei em Salvador, ao ser conduzido ao local de culto aos mortos da comunidade, encontrei uma cruz plantada ao solo na entrada do templo. Mais uma vez o símbolo, conexão entre dois mundos distintos; contudo, em permanente comunicação.
“Ainda mais ousada é a assimilação pela imaginária, pela liturgia e pela teologia cristãs do simbolismo da Árvore do Mundo. Também neste caso estamos às voltas com um símbolo arcaico e universalmente difundido. (…) a imagem da Cruz como Árvore do bem e do mal, e Árvore Cósmica, tem origem nas tradições bíblicas. É, porém, pela Cruz (= o Centro) que se opera a comunicação com o céu e que, ao mesmo tempo, é ‘salvo’ o universo em sua totalidade. Ora, a noção de salvação nada mais faz do que retomar e completar as noções de renovação perpétua e de regeneração cósmica, de fecundidade universal e de sacralidade, de realidade absoluta e, finalmente, de imortalidade, todas noções coexistentes no simbolismo da Árvore do Mundo”.

Texto da Intercom – Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares da Comunicação
XXIV Congresso de Comunicação - Campo Grande/MS - 2001

Este baobá localizado na província de Limpopo no norte de África do Sul e é famoso internacionalmente por ser o maior de sua espécie no mundo.

Foto: kimbolagoa.blogs.sapo.pt/2009/06/














Baobá no Passeio Público em Fortaleza